1964: os resquícios do golpe, 60 anos depois

 1964: os resquícios do golpe, 60 anos depois

Passados 60 anos daquele 31 de março, em 1964, o Brasil vive um regime democrático submetido a diversos testes. O mais grave deles, sem dúvida, foi o 8 de janeiro de 2023, em Brasília, quando hordas de manifestantes depredaram as sedes dos Três Poderes da República, por não se conformarem com a derrota de Jair Bolsonaro (um militar aposentado saudoso da 1964) para Luiz Inácio Lula da Silva.

O golpe de 1964 nunca fui devidamente exorcizado da vida política do país. Com a anistia, em 1979, nenhum militar acusado de prisões arbitrárias ou assassinatos ao longo de 21 anos (1964-85) foi levado a julgamento.

Entre 2011 e 2014, o governo de Dilma Rousseff (PT) tentou fazer um acerto de contas com o passado, estabelecendo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo objetivo era justamente expiar esse passado insepulto.

Foi a Comissão que, em seus trabalhos, apontou graves violações aos direitos humanos nos 21 anos de regime autoritário. A CNV elencou aproximadamente 434 pessoas, entre mortos e desaparecidos durante a ditadura.

Mesmo que sem função punitiva, a simples atuação da CNV, chamando ex-militares a depor, causou um desgaste jamais superado entre Dilma e a caserna.

A partir do terceiro governo Lula (assumiu em 1º de janeiro de 2023), que enfrentou uma tentativa frustrada de golpe de 8 de janeiro do ano passado, com participação importante de setores militares, segmentos que defendem o regime de 1964 estão na defensiva. Foram proibidos de comemorar 1964, como vinham fazendo há anos. Todavia, o governo petista também orientou que não sejam feitas alusões públicas de condenação ao golpe, uma forma de tentar manter uma relação já bastante trincada com os militares.

E quando chegamos a mais um 31 de março, a pergunta que surge é se 1964 realmente é apenas um eco do passado ou se aqueles que defendem a democracia acima de qualquer rompante autoritário ainda precisam se preocupar.

Sobre isso, buscamos ouvir a opinião de dois professores da área de História. Um deles, o professor Moacir Bolzan, que além de vice-diretor do Colégio Politécnico da UFSM, é graduado em Direito, também graduado e doutor em História. O outro, o professor Gilvan Dockhorn, doutor em História lotado no departamento de Turismo da UFSM, também membro da Refat (Rede de Estudos dos Fascismos, Autoritarismos, Totalitarismos e Transições para a Democracia), que reúne pesquisadores do Brasil, Portugal, entre outros países. Acompanhe a seguir os depoimentos.

Herança maldita

Uma das primeiras questões levantadas aos dois professores é, se, mesmo passados 60 anos, ainda temos alguma “herança” do golpe de 1964.

Moacir Bolzan diz não ter dúvidas que não somente o golpe de 64, mas todo o período que o sucedeu deixou as suas marcas e, de modo “muito severo”, removeu da sociedade e do próprio Estado brasileiro quase tudo o que se vinculava à democracia. Ele acrescenta ainda que “a partir da redemocratização esta fragilidade ficou ainda mais evidente, pois ela se apresentou em distintas performances, ou seja, teve mais contornos políticos, jurídicos e institucionais e menos nos aspectos econômico e social.”

Gilvan Dockhorn avalia os reflexos do golpe civil-militar dentro de um contexto mais amplo. Olhando para a história do Brasil, ele observa três momentos de apagamento (ou silenciamento): a invisibilização sobre a matança dos povos indígenas; o não encaminhamento de soluções em relação à escravização do povo negro, que seria uma das causas do racismo estrutural vigente; e o não trato (ao deixar de lado) das experiências ditatoriais vividas pelo país, com seus entulhos autoritários.

Para o historiador, a superação pela sociedade e pelas instituições moldadas pelo golpe e posteriormente pelo regime civil-militar necessitariam, para além de um projeto de transição democrática, de uma justiça de transição, que acabou nunca se consolidando no país.

Ele acrescenta ainda que “ao não se punir quem praticou crimes em nome do Estado; ao não rever as instituições repressivas e punitivas; ao não implementar políticas de memória e de reparação às vítimas e seus familiares; ao não problematizar lugares de memória e símbolos de ode à ditadura; ao não propor um processo social e pedagógico que cristalizassem no imaginário social a importância da democracia e suas instituições, criando elementos não negociáveis e intoleráveis, como a  apologia à tortura, o elogio a assassinos, a defesa da ditadura e de golpes de Estado, ampliam-se os riscos de retrocesso e de retorno a esse passado nefasto e violento.”

Relações entre 8 de janeiro de 2023 e 1964

É possível estabelecer uma relação entre o 8 de janeiro de 2023, quando manifestantes vandalizaram a sede dos Três Poderes da República e o golpe civil-militar de 31 de março de 1964?

Para o professor Gilvan Dockhorn, os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, e todo o processo que o antecedeu, com tentativas de atos de terror, manifestações antidemocráticas, desqualificação do processo eleitoral e veemente defesa da ditadura, são consequência direta do “não-trato com o passado autoritário” e revelam o desprezo de parte da sociedade brasileira à democracia e a suas instituições.

Na ótica do historiador, a permissividade e tolerância com posturas e práticas não democráticas (simbolizadas nas campanhas explícitas por intervenção militar, pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, pela postura do presidente Jair Bolsonaro e seu governo), criou o ambiente favorável ao acolhimento de uma solução “salvacionista” aos moldes de 1964.

Moacir Bolzan afirma que a sequência e o conjunto dos atos ocorridos em 8 de janeiro de 2023 ajudam a compreender como o episódio se encaixa na história recente do país, dialogando com questões ainda não resolvidas no processo de redemocratização do Brasil.

Nesse sentido, ele diz que basta observar as recentes mobilizações sociais e a forma como se denominam, com chamamentos como: “Relembrar o golpe para nunca mais acontecer”, “Repúdio à ditadura militar” e “Atos em defesa da democracia brasileira”. Para ele, são exemplos dessas mobilizações que remetem a esta vinculação entre uma data e outra. Outro aspecto que, segundo Bolzan, reforça o tensionamento entre os dois momentos históricos, é a polarização social e política, que aparece e transforma oponentes em inimigos e divergências em valores sem conciliação.

O silenciamento governamental sobre 1964

O atual governo proibiu manifestações nos quartéis que relembrem positivamente o golpe de 1964 e também proibiu eventos públicos que critiquem os 60 anos do golpe civil-militar, por considerar ser mais importante pensar no futuro do que no passado. De que forma avaliar essa iniciativa?

Moacir Bolzan ressalta não ter simpatia por atitudes que “remetem ao esquecimento desse tipo de passado”. Para o historiador, esse comportamento “desvaloriza a memória e os sacrifícios das pessoas que defendem a democracia e a trajetória histórica do país. Para esse momento, o silêncio não é o comportamento mais adequado”, sublinha.

Na visão do professor do Colégio Politécnico, não é possível esquecer que houve mortos, desaparecidos, torturados, cassados e perdas de direitos políticos da sociedade.  “Poder-se-ia aproveitar a ocasião do aniversário dos 60 anos da data para revisitar este passado e atribuir-lhe motivações para entender o presente e projetar o futuro”, frisa ele.

Gilvan Dockhorn enfatiza que “o golpe civil-militar de 1964 não é data a ser celebrada, saudada ou comemorada como o fizeram elementos do governo Jair Bolsonaro e parte da oficialidade militar identificada com o ideário golpista”. Contudo, argumenta o historiador, o golpe e o regime que o seguiu devem ser trazidos à memória como forma de reflexão e de zelo com a democracia, inclusive nos quartéis, como mecanismo pedagógico na formação de oficiais legalistas e democratas.

No caso de não ser possível uma análise crítica do passado autoritário, acrescenta Gilvan, “a proibição de celebração da efeméride, que marca a ruptura de uma democracia, me parece adequada a um Estado que se pretende democrático.

Punição pedagógica

Após o 8 de janeiro de 2023, centenas de pessoas foram presas e, aos poucos, vêm sendo julgadas e punidas. Qual a importância desse processo?

No entendimento de Gilvan Dockhorn, a responsabilização e punição implacável aos envolvidos direta e indiretamente – financiadores e incentivadores- é pedagógica, necessária institucionalmente e protege as instituições democráticas ao desmobilizar os movimentos dos mais empolgados em novas tentativas golpistas, na medida em que estes “ainda orbitam nossa sociedade”.

Moacir Bolzan acredita que a manifestação mais incisiva da necessidade de punição dos responsáveis (pelo 8 de janeiro de 2023) foi a demonstração imediata da sociedade brasileira, no dia 9 de janeiro de 2023 e dias seguintes.

“Milhares de pessoas foram às ruas exigir respeito aos resultados das eleições, prisão dos responsáveis e punição para as suas lideranças. O que a sociedade reivindica é que todos os implicados nesse crime, sejam eles, civis ou militares, empresários ou cidadãos comuns, políticos ou não, responsáveis por redes sociais, tenham as penas que merecem. Assim, todos os responsáveis, independentemente de suas origens e status, devem responder pelos seus equívocos”, enfatiza Bolzan.

O professor acrescenta ainda que, no seu entendimento, “as punições não devem apenas salvaguardar a memória deste triste episódio, mas também fortalecer a resistência a esse tipo de ataque aos poderes constituídos, a defesa das liberdades democráticas e o respeito ao sistema eleitoral.”

 O futuro da democracia

Passados 60 anos do golpe civil-militar, é possível afirmar que a data é apenas uma lembrança, ou a democracia brasileira ainda corre riscos?

Para Moacir Bolzan, não é possível afirmar que poderá haver uma repetição do golpe de 1964 e destaca que nem mesmo se trata de acreditar ou desacreditar. No entanto, analisa ele, a democratização que sucedeu a ditadura foi limitada à desconcentração aparente de poder em apenas duas direções: primeiro, do poder político em torno do Executivo e segundo, a desconcentração do poder econômico em torno do Estado.

Essa “falsa ilusão liberal”, diz o historiador, levou à manutenção do autoritarismo como “inspiração ideológica” de uma transição que parece não ter fim, ou não se concluiu. Por isso, acrescenta Bolzan, os momentos críticos são recorrentes e as suas manifestações frequentes.

Gilvan Dockhorn diz que “prever o futuro não é tarefa do historiador”. Contudo, acrescenta ele, dado o cenário em que ainda se tem a defesa explícita de ações antidemocráticas por parte de setores da sociedade, do apoio considerável que o discurso autoritário ainda mantém, pela radicalização de posturas de integrantes da política institucional, com prefeitos, vereadores, deputados e senadores assumidamente defendendo pautas autoritárias, “creio que ainda vivemos um período de disputa e embate pela democracia e suas instituições basilares”.

Gilvan finaliza afirmando: “o alerta ainda está soando, e como (Bertolt)Brecht já mencionou, a liberdade e a democracia estão sempre em risco”.

Texto: Fritz Nunes e Laurent Keller

Imagens: Arquivo Público do DF (foto principal) e arquivo pessoal

Fritz Nunes

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