A quem interessa instituir o ensino domiciliar no Brasil?

 A quem interessa instituir o ensino domiciliar no Brasil?

As intencionalidades por detrás do projeto que objetiva instituir a educação domiciliar no Brasil, bem como as consequências a serem observadas no caso de o projeto virar lei, foram tema da primeira live promovida pela nova Diretoria Nacional do Sinasefe.

Realizado na noite do dia 24 de maio, o debate virtual foi transmitido pela página de Facebook da entidade nacional e contou com a participação de Rafaella Florêncio, professora do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE; e de Luíza Colombo, professora do Colégio Pedro II. A mediação ficou por conta de João Carlos Chicaczewski e Manoel José Porto Junior, Secretário e Secretário-Adjunto, respectivamente, da Coordenação de Políticas Educacionais e Culturais do Sinasefe Nacional.

Aprovado no dia 18 de maio pela Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei (PL) 3.179/2012 regulamenta o ensino domiciliar, ou homeschooling, no Brasil, permitindo que todas as etapas da Educação Básica (Ensino Infantil, Fundamental e Médio) possam ser ofertadas em casa ou demais locais privados, sob tutela de pais, mães ou responsáveis legais.

Luíza Colombo, docente do Colégio Pedro II

De início, Luíza Colombo, docente do Colégio Pedro II, bacharel e licenciada em Pedagogia, mestra e atual doutoranda em Educação, já esclarece: a educação domiciliar não vem complementar a educação escolar, e sim substituí-la.

“[Na educação domiciliar] a responsabilidade pela orientação, planejamento e promoção da educação dos filhos é da família. É quando a criança ou o adolescente tem negado o seu direito à educação escolar, formal, científica e laica, ficando à mercê das escolhas de seus responsáveis legais”, explica a professora, acrescentando que uma proposta como essa vem sendo apresentada e discutida em um país no qual o acesso e a permanência de crianças e jovens no ambiente escolar não vêm sendo sequer plenamente garantidos.

Isso quer dizer, comenta Luíza, que a educação brasileira tem de sanar problemas anteriores, basilares. Problemas que deveriam estar sendo o foco das políticas públicas propostas. Em um cenário de tamanha desigualdade, um projeto como o da educação domiciliar seria devastador. Exemplos trazidos pela palestrante foram os altíssimos índices de evasão escolar, agravados com a pandemia; o aumento do desemprego e da miséria; o fechamento das escolas do campo; a falta de transporte, água, esgoto; a carência de merenda escolar e a ausência, em muitos locais, de computadores e sinal de internet. Sem terem as condições mínimas demandadas por um processo de aprendizagem, crianças e jovens em diversas localidades do país são alijados do acesso à formação escolar.

O caminho, salientam as palestrantes, não passa por enfraquecer o ambiente coletivo escolar, tal como apregoam os defensores da educação domiciliar, mas por fortalecer processos de mobilização que arranquem dos governos mais investimentos nas escolas, mais liberdade de cátedra e de pensamento, mais orçamento para ciência e tecnologia e efetivas condições de permanência.

Uma retomada histórica

Para entender o motivo de o projeto de educação domiciliar ter arregimentado parte do parlamento, garantindo, até então, uma aprovação na Câmara, Rafaella Florêncio faz uma breve retomada das ligações que Jair Bolsonaro vem tecendo com grupos muito específicos da sociedade brasileira, desde que entrou para a vida política.

Rafaella Florêncio, docente do IFCE

Ela, que é professora do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Ceará, licenciada em Pedagogia e História, mestra, doutora e pós-doutora em Educação e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena – NEABI do IFCE campus Canindé, explica que o bolsonarismo assenta-se sob três pilares: o neoconservadorismo, o neoliberalismo e o setor militar saudosista da ditadura.

Quando ingressa na política institucional, praticamente junto com a redemocratização brasileira, Bolsonaro sela uma aliança com o público militar. “Ele foi encontrando, a cada gestão, uma possibilidade de ampliação, abraçando especificamente temas conservadores”, comenta a palestrante. A partir de seus vários movimentos, o agora presidente conseguiu ampliar a fidelização já conquistada do público militar para alcançar também o setor conservador, prioritariamente evangélico.

Dois episódios foram centrais para sedimentar Bolsonaro como o candidato perfeito tanto para militares quanto para conservadores. O primeiro episódio destacado por Rafaella foi a Lei nº 13.010, também conhecida como Lei Menino Bernardo, sancionada em 2014 e segundo a qual o governo federal, estados e municípios devem atuar conjuntamente na promoção de campanhas educativas sobre o tema “Educação sem Violência” e na capacitação de profissionais (desde professores até profissionais da saúde, passando por representantes de órgãos de segurança pública) para atenderem crianças e adolescentes vítimas de castigos físicos ou tratamento degradante. Segundo segmentos do bolsonarismo, tal lei representaria um interferência do Estado na forma como a família educa as crianças e adolescentes.

O segundo episódio foi a aprovação da cartilha “Escola sem Homofobia”, propagandeada pela ala conservadora como “kit gay” e usada para associar a escola a um lugar de degradação moral, afastar crianças da sociabilidade e coletivização e criminalizar educadores.

Uma vez que o governo Bolsonaro também é indubitavelmente fiel ao receituário neoliberal, levado ao cabo especialmente por seu ministro Paulo Guedes, completa-se, então, a tríade de sustentação do bolsonarismo: o militarismo, o neoconservadorismo e o neoliberalismo.

“A demanda pela regulamentação do ensino domiciliar é uma demanda do setor conservador ou neoconservador”. Comenta Rafaella.

Contudo, se atende aos interesses do fundamentalismo religioso, o projeto de ensino domiciliar também é um presente aos empresários da educação.

Interesses privatistas

Ao elencar as consequências de uma possível aprovação do projeto de educação domiciliar no Senado, Luíza comenta que tenderá a ocorrer a substituição de escolas por grupos de tutores e a substituição de professores por aplicativos e serviços de apostilha – todos esses ofertados por grandes empresas de informação e comunicação. Durante a pandemia e a necessária suspensão da presencialidade, o ensino remoto serviu como laboratório para que diversos empresários vissem, na Educação, uma possibilidade de aumentarem suas margens de lucros.

Para a docente, o conservadorismo difunde o pânico moral acerca das escolas (colocando-as como lugares que deseducam e desviam e defendendo que as crianças e jovens recebam uma educação condizente com os princípios ideológicos, morais e religiosos das famílias) para que se consiga, também, vender o receituário neoliberal (desresponsabilização do Estado com o financiamento da educação pública). É o “casamento” perfeito.

Dentre as demais consequências do ensino domiciliar, a professora destaca: “a retirada do direito à educação escolar pública, gratuita e laica; a exposição das crianças e jovens ao abandono intelectual, à privação do conhecimento científico e a uma formação baseada no negacionismo e fundamentalismo; a substituição de escolas por grupos de crianças formados exclusivamente dentro das igrejas ou associações religiosas; ou mesmo a substituição das escolas por nada. Será a exposição de jovens e crianças a inúmeras violações de direitos no espaço privado, sem direito a qualquer tipo de assistência e proteção”.

Luíza pondera que existem três políticas prioritárias do governo Bolsonaro para a educação: 1) a privatização da rede pública em todos os níveis de ensino, através da transferência de fundo público pelo sistema de vouchers; 2) a militarização das escolas; 3) a educação domiciliar.

“Então, a educação domiciliar está dentro do pacote que essa frente vem defendendo nos últimos anos para a educação. É a educação vista como produto, contrapondo-se à nossa concepção de educação como direito. A implementação da educação domiciliar como política educacional, se aprovada, vai aprofundar as desigualdades educacionais em nosso país”, comenta Luíza, lembrando, também, o projeto “Escola sem Partido”, defendido há anos por setores conservadores e responsável por deslegitimar a escola e seus educadores e educadoras.

“Temos muita luta e mobilização pela frente, porque esse projeto ainda não foi aprovado. Temos força e potência para barrar esse processo”, conclui a docente do Colégio Pedro II.

Educação é o alvo da vez

Na avaliação de Rafaella, será no campo da educação que o bolsonarismo promoverá sua disputa mais evidente e acirrada para manter-se no poder institucional, buscar setores que espraiaram de sua base de apoio e renovar seu contrato de fidelização com a ala mais reacionária da sociedade brasileira.

“A aprovação [pela Câmara] do ensino domiciliar, junto com a tentativa de aprovar uma proposta que institui mensalidade em instituições públicas, faz-nos pensar que o campo educacional será talvez a grande frente de Bolsonaro para garantir suas promessas eleitorais. Então a educação provavelmente vai sofrer alguns abalos na tentativa de unificação entre os neoconservadores, os neoliberais e os militares saudosistas. Essa é uma perspectiva de educação que certamente não defendemos e exigirá de nós uma disposição ainda maior para nos colocarmos de pé diante de mais esses ataques”, finaliza a docente do IFCE.  

Quem perdeu a live “O ensino domiciliar como política pública: a quem interessa” ao vivo, pode assisti-la, na íntegra, no perfil de Facebook do Sinasefe Nacional. Clique aqui e confira.

Bruna Homrich

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