Assessoria jurídica diz que portaria nº 983 afronta autonomia universitária

 Assessoria jurídica diz que portaria nº 983 afronta autonomia universitária

A portaria nº 983, publicada em 18 de novembro de 2020 pelo Ministério da Educação, vem sendo duramente criticada pelo Sinasefe e por demais entidades ligadas à defesa da educação e dos direitos de professores e professoras.

E motivos para a contrariedade à proposta não faltam, já que, além de representar uma ameaça frontal à autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira das Instituições Federais de Ensino, também impõe uma nova carga horária mínima para docentes da Rede Federal de Ensino, sobrecarregando-os com atividades de ensino e os levando, necessariamente, a despriorizarem – quando não abandonarem totalmente – as atividades de pesquisa e extensão. Assim, fere o tripé constitucional que alicerçaria as universidades e demais instituições de pesquisa científica e tecnológica (como os Institutos Federais).

Formalmente, a portaria estabelece “diretrizes complementares à Portaria nº 554, de 20 de junho de 2013, para a regulamentação das atividades docentes, no âmbito da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica”. Contudo, segundo Nota Técnica elaborada pelo escritório Wagner Advogados Associados, responsável por prestar assessoria jurídica ao Sinasefe Nacional e à seção sindical de Santa Maria, a nº 983 carrega uma série de vícios de legalidade.

“[…] ao emitir a referida Portaria, o Ministro de Estado ignora o sistema constitucional de proteção ao direito fundamental à educação, às liberdades fundamentais e à autonomia das universidades, que é extensível às instituições integrantes da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica”, atesta trecho final da nota, que pode ser lida, na íntegra, aqui.

Constituição e LDB penalizadas

De início, o documento dos assessores jurídicos já lembra que a Constituição Federal de 1988 assegura, em seu artigo 207, a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira das universidades e demais instituições de pesquisa científica e tecnológica, bem como a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

Ainda no que diz respeito à autonomia, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) traz, em seu artigo 53, inciso 1, a previsão de que são os colegiados de ensino e pesquisa das universidades (e demais instituições que comprovem alta qualificação para o ensino e para a pesquisa) que devem decidir sobre uma série de questões, dentre as quais os planos de carreira docente, a programação das pesquisas e das atividades de extensão, a elaboração da programação dos cursos e a criação, expansão, modificação e extinção de cursos.

Já em seu artigo 54, a LDB sinaliza que as instituições poderão elaborar o regulamento de seu pessoal docente, técnico e administrativo em conformidade com as normas gerais concernentes.

É nesse contexto, alicerçado na Constituição de 1988 e na LDB – ambas responsáveis por garantirem o direito à educação e a autonomia das instituições de ensino -, que se insere a Lei nº 11.892/2008, a partir da qual é instituída a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e são criados, consequentemente, os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. O inciso primeiro do segundo artigo de tal lei garante que os Institutos Federais são equiparados às universidades federais no que tange à regulação, avaliação e supervisão das instituições e dos cursos de educação superior.

“Os Institutos Federais de Ensino, desse modo, detêm idênticas prerrogativas quanto à autonomia, cumprindo-lhes deliberar sobre a pertinência e o conteúdo de uma normativa destinada a regulamentar a atividade docente, isto é, a orientar o planejamento, a execução e a avaliação das atividades de ensino, de pesquisa e de extensão em conformidade com a realidade e as necessidades localmente experimentadas”, diz trecho da Nota Técnica.

Outra ressalva importante: a administração dos Institutos Federais de Ensino deve ser feita pelos Conselhos Superiores, que possuem caráter não apenas consultivo, mas também deliberativo. Isso significa, na prática, que decisões sobre a regulamentação da atividade docente são legalmente atribuídas aos Conselhos Superiores.

Toda essa introdução faz-se necessária para entendermos alguns dos principais vícios e inconsistências jurídicas da portaria nº 983. Se cabe às instituições – e, mais especificamente, a seus conselhos – definir sobre as questões acima citadas, então o ministro da Educação incorre em erro quando, através da portaria, visa determinar o modo como as instituições devem distribuir a carga horária semanal de seus docentes.

Carga horária mínima

Segundo a portaria nº 983, os docentes em regime de tempo integral deveriam cumprir um mínimo de quatorze horas semanais, ao passo que, para os docentes em regime de tempo parcial, esse mínimo seria de dez horas. Tais disposições deveriam estar fixadas no regulamento das instituições.

Ocorre que, conforme expresso na Nota Técnica, se essas determinações de carga horária forem levadas a cabo, os docentes terão de destinar o mínimo de horas semanais para “aulas em disciplinas de cursos” – ou seja, para a sala de aula – e o mesmo número de horas também para as atividades acessórias que são imprescindíveis às atividades de sala de aula. Assim, pouco ou nada resta de tempo ao docente para que se dedique à pesquisa e à extensão. Dessa forma, a portaria feriria a própria Constituição Federal, que define o tripé ensino, pesquisa e extensão como basilar para as instituições federais de ensino.

Tripé também previsto na lei nº 12.772/12, que estrutura o Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal (PCCMF), e segundo a qual as atividades próprias dos cargos da carreira de Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico devem estar relacionadas ao ensino, pesquisa, extensão, direção, assessoramento, chefia, coordenação e assistência na própria instituição.

Além de ferir o tripé, a portaria ainda sobrecarrega os docentes, desconsiderando a diferenciação existente entre “hora de atividades” e “hora de trabalho escolar efetivo”. Conforme parecer n. 261/2006, do Conselho Nacional de Educação, tal entendimento é necessário para desconstruir a ideia de que aula se resume apenas ao ato de o professor estar em sala de aula.

Explicam os assessores jurídicos que

“se a intenção da previsão trazida pela Portaria n. 983 for a de promover a transformação da carga horária do professor em minutos para então convertê-los em horas-aula – ou seja, considerando como atividade docente apenas o estrito tempo da duração das mesmas –, a prática é desprovida de base normativa e incompatível com a natureza do trabalho docente […] Isso significa, conclusivamente, que a utilização de métrica inferior a 60 minutos pelas Instituições Federais de Ensino para fins de fixação das suas horas-aula não implica redução da atividade docente, que permanece sendo prestada pelo docente que se encontra em disponibilidade do ente público”.

Assim, cabe às instituições de ensino – e não ao governo – definirem, desde que respeitando as cargas horárias totais dos cursos, quantos minutos estão previstos em uma hora-aula. “[…] uma IES poderia prever em seu projeto pedagógico trabalhar com aulas de 40, 50, 60 ou 90 minutos. Isto não faz a menor diferença, desde que não comprometa a carga horária final do curso, quanto aos mínimos exigidos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e demais normas legais”, complementa a análise jurídica.

Na perspectiva dos assessores jurídicos responsáveis pela elaboração da nota, é importante que o Sinasefe e suas seções sindicais atuem ostensivamente “junto ao Ministério da Educação para o fim de retificar ou suspender o conteúdo do ato administrativo”, uma vez que a portaria, devido ao fato de desconsiderar as competências atribuídas às instâncias internas de cada instituições, representa uma afronta à autonomia.

Em portaria publicada no dia 3 de maio deste ano e assinada pelo ministro da Educação, Milton Ribeiro, estabelece-se que a regulamentação das atividades docentes, conforme prevista na nº 983, deve ser publicada até 31 de janeiro de 2022 pelas instituições de ensino que integram a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.

Audiência na Câmara

Nesta sexta-feira, 24 de setembro, ocorre uma audiência pública na Câmara de Deputados para debater os impactos da portaria nº 983 na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.

Requerida pelas deputadas federais Maria do Rosário (PT-RS) e Professora Rosa Neide (PT-MT), a audiência terá as participações do coordenador geral do Sinasefe Nacional, David Lobão; do Conif (Sônia Regina de Souza Fernandes); do IFSP (Rogério de Souza) e da ex-reitora do IF Farroupilha-RS (Carla Comerlato Jardim).

O debate será transmitido ao vivo pelo site e canal de Youtube da Câmara.

Resumo da Nota Técnica

A Nota Técnica contém 16 páginas e está disponível para download nesta página. Contudo, a assessoria jurídica também a resumiu nestes 17 pontos:

A presente correspondência tem a finalidade de encaminhar nota técnica destinada à análise da Portaria nº 983/2020, de lavra do Ministro da Educação. Em relação à normativa em questão, cabe, de forma sintética, apontar as seguintes conclusões advindas da análise realizada:

a) A Portaria nº 983, de 18 de novembro de 2020, do Ministério da Educação consubstancia ato administrativo desprovido de técnica normativa e dotado de vícios de legalidade, visto que, ao emitir a referida Portaria, o Ministro de Estado ignora o sistema constitucional de proteção ao direito fundamental à educação, às liberdades fundamentais e à autonomia das universidades, que é extensível às instituições integrantes da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.

b) As prerrogativas inerentes à autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira, a serem exercidas pelos Conselhos Superiores em atenção à necessidade de gestão democrática do ensino, reservam aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia a competência para a regulamentar as atividades dos servidores pertencentes às Carreiras e Cargos Isolados do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal em conformidade com a realidade e as necessidades localmente experimentadas, bem como às Leis nos 11.892/08 e 12.772/12.

c) A Lei nº 12.772/12 dispõe sobre especificidades da vida funcional dos integrantes do Plano de Carreiras e Cargos do Magistério Federal, a exemplo dos critérios para o ingresso nas carreiras e cargos isolados, estágio probatório, desenvolvimento funcional (progressão e promoção), composição da remuneração e modalidades de regime de trabalho. Tais previsões excepcionam o conteúdo do Regime Jurídico Único e interpretam-se de acordo com a estrita legalidade, isto é, não se admite que norma destinada a regulamentar o conteúdo da Lei nº 12.772/12 disponha de forma não prevista, especialmente se a consequência lógica desta regulamentação implicar a restrição ou extinção de direito do servidor.

d) No tocante aos atos administrativos normativos, cabe salientar que, ainda que no exercício do poder regulamentar que deriva do art. 87, parágrafo único, inciso II, da Constituição Federal, é vedado ao Ministro da Educação inovar no ordenamento jurídico em atos de natureza regulamentar.

e) O fundamento normativo invocado pela portaria em questão para justificar sua edição (§ 4º do art. 14 da Lei nº 12.772/12) não guarda relação com o conteúdo por ela versado, carecendo a mesma de base legal.

f) No que diz com o conceito de mediação pedagógica, embora se vislumbre a intenção de inserir as Instituições Federais de Ensino na prestação do ensino à distância – ainda que de natureza transitória, no período equivalente à emergência sanitária decorrente da pandemia da COVID-19 –, denota-se sua impropriedade, visto que, nos termos do art. 1º do Decreto nº 9.057/17, que regulamenta a modalidade de ensino à distância sobre o qual versa o art. 80 da Lei de Diretrizes e Bases da educação, “mediação pedagógica” não diz respeito à atuação do docente, mas às ferramentas utilizadas para o exercício desta atividade (meios e tecnologias da informação e comunicação).

g) Em observância ao princípio da autonomia, cumpre aos Conselhos Superiores das Instituições Federais de Ensino a competência para deliberar sobre a adequação das atividades desempenhadas pelos integrantes do o Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal – PCCMF e a forma pela qual dar-se-á o cômputo das horas, considerando o projeto pedagógico de cada instituição, ao art. 2º da Lei nº 12.772/12.

h) A previsão constante da Portaria nº 983 no sentido de que “o tempo destinado às atividades docentes será mensurado em horas de 60 (sessenta) minutos”, além de invadir a competência acima descrita e não encontrar base legal, confunde os conceitos de I) a carga horária semanal do professor (equivalente à jornada de trabalho prefixada em concurso público), II) as diretrizes dadas pela LDB no que tange à carga horária mínima anual que é direito dos estudantes (horas letivas, equivalentes a 60 minutos) e III) as horas-aulas estabelecidas pelas Instituições Federais de Ensino para os fins de organização do seu projeto pedagógico.

i) Considerando que o número de “horas-relógio” exigido para fins de organização da jornada de trabalho no que diz respeito ao cômputo da carga horária de cada regime e pela LDB para fins de carga mínima anual de ensino não se confundem com – e nem retiram – a prerrogativa de cada instituição definir a duração da hora-aula, não se admite lícita a utilização do item “2.2” da Portaria n. 983 nesta última hipótese

j) Nesse contexto, evidente que, se a intenção a intenção da previsão trazida pela Portaria nº 983 for a de promover a transformação da carga horária do professor em minutos para então convertê-los em horas-aula – ou seja, considerando como atividade docente apenas o estrito tempo da duração das mesmas –, a prática é desprovida de base normativa e incompatível com a natureza do trabalho docente.

k) Isso significa, conclusivamente, que a utilização de métrica inferior a 60 minutos pelas Instituições Federais de Ensino para fins de fixação das suas horas-aula não implica em redução da atividade docente, que permanece sendo prestada pelo docente que se encontra em disponibilidade do ente público. O Parecer do Conselho Nacional de Educação n. 261/2006 estabelece que, “aula não se resume apenas à preleção em sala. (…) na hora escolar brasileira, tornou-se prática consagrada destinar-se, a cada hora, dez minutos aos chamados “intervalos”. Esse esquema de 50 + 10, em verdade, se enraíza no próprio racionalismo pedagógico, fazendo parte da atividade educativa”.

l) Paralelamente, nesse ponto, a Portaria nº 983 representa afronta ao art. 75 da Lei nº 8.112/90 no que determina que “o serviço noturno, prestado em horário compreendido entre 22 (vinte e duas) horas de um dia e 5 (cinco) horas do dia seguinte, terá o valor-hora acrescido de 25% (vinte e cinco por cento), computando-se cada hora como cinquenta e dois minutos e trinta segundos”.

m) No que diz com a previsão relativa ao modo pelo qual as instituições de ensino devem distribuir a carga horária semanal dos seus docentes (mínimo de 14 horas semanais para os docentes em regime de tempo integral e mínimo de 10 horas semanais para os docentes em regime de tempo parcial), além de promover teratológica ingerência sobre a autonomia didático-científica das instituições de ensino, implica preterição na tríade para a qual existem tais instituições, isto é, o exercício das atividades de ensino, de pesquisa e de extensão.

n) A medida também não encontra base legal, indo até mesmo de encontro à Lei de Diretrizes e Bases da educação, que, ao dispor especificamente sobre a educação superior, estabelece que, “nas instituições públicas de educação superior, o professor ficará obrigado ao mínimo de oito horas semanais de aulas” (art. 57).

o) Ao exigir que os docentes apresentem Plano Individual de Trabalho para cada semestre letivo e, ao seu final, um Relatório Individual de Atividades Desenvolvidas (sendo este passível de utilização “para fins de distribuição da carga horária e disciplinas, bem como avaliação docente com vistas à progressão funcional, estágio probatório, participação em editais institucionais de capacitação, pesquisa, extensão, remoção, redistribuição, entre outros”), a Portaria n. 983 novamente invade competência afeta aos Conselhos Superiores, a quem cabe dispor sobre a elaboração da programação dos cursos, das pesquisas, das atividades de extensão e dos planos de carreira docente.

p) Por fim, quanto à previsão trazida pela portaria em questão no sentido de que as instituições de ensino integrantes da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica editem os regulamentos nela previstos, embora o detalhamento das atividades docentes consubstancie atribuição outorgada aos Conselhos Superiores das Instituições Federais de Ensino, é indubitável que não lhes incumbe a adoção de quaisquer providências que sejam ilegais e que contrariem a sua autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira.

q) À medida que a Portaria nº 983/2020, afronta a autonomia dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, sugere-se a atuação ostensiva junto ao Ministério da Educação para o fim de retificar ou suspender o conteúdo do ato administrativo, providência esta que não elide a eventual propositura de ação judicial.

Bruna Homrich

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