Em meio a atos de racismo, Lei de Cotas completa 14 anos de implementação na UFSM

 Em meio a atos de racismo, Lei de Cotas completa 14 anos de implementação na UFSM

Na última segunda-feira, 9 de maio, postagens de cunho racista, publicadas por estudante do terceiro semestre de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), viralizaram nas redes sociais. A reitoria da instituição registrou a ocorrência na Polícia Federal e afastou a aluna por 30 dias, até que as investigações sejam concluídas. A atitude racista acontece no período em que se completam 14 anos desde a implementação das ações afirmativas na UFSM. A instituição foi uma das pioneiras da Lei de Cotas, que foi posta em vigor na totalidade das universidades públicas brasileiras somente quatro anos mais tarde, em 2012, em meio a protestos favoráveis e contrários à medida. Em 2022, quando o projeto completa 10 anos, a Lei deve ser revisada.

Reitor Luciano Schuch discursando em ato antirracista em10 de maio. Crédito: Vicent Solar, mestrando de artes visuas na UFSM.

A ação preconceituosa desta semana gerou revolta na comunidade acadêmica, que, em resposta às publicações, protestou, no último dia 10, pedindo pela expulsão da aluna. O ato iniciou em frente ao Centro de Artes e Letras da UFSM e, posteriormente, seguiu para a reitoria da universidade, onde reitor (Luciano Schuch) e vice-reitora (Martha Adaime) expressaram suas indignações em relação ao acontecimento. Momentos como este demonstram o quão preconceituoso e desigual o Brasil continua sendo hoje em dia, o que destaca a relevância das ações afirmativas no meio acadêmico.

De 2008 a 2012, a UFSM já contava com uma política de ingresso e permanência universitária de acadêmicos cotistas, assessorada pelo Observatório de Ações Afirmativas para Acesso e Permanência nas Universidades Públicas da América do Sul (Afirme).

Mais tarde, em 2012, durante o governo Dilma, a política de cotas foi implementada nacionalmente nas 69 universidades federais e nos 38 institutos federais, por meio da lei 12.711/2012, destinando 50% das matrículas por curso e turno a estudantes que tenham feito todo o ensino médio em escolas públicas. Dessas vagas, 50% são destinadas a estudantes pertencentes a famílias de renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita; enquanto o restante subdivide-se entre os estudantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, e pessoas com deficiência, com porcentagem variada, a depender das especificidades de cada estado brasileiro.

2022 está marcado como o prazo para que ocorra a revisão da Lei que, a partir da análise dos avanços e entraves ainda não superados, pode ser revogada ou alterada, por meio de lei ordinária proposta por qualquer membro da Câmara dos Deputados, do Senado, do Congresso Nacional, pelo Presidente da República, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), pelos Tribunais Superiores, pelo Procurador Geral da República e até mesmo pelos cidadãos. Caso contrário, a lei segue vigorando normalmente sem nenhuma alteração.

Avanços promovidos pela Lei de Cotas

Infelizmente, o Brasil não apresenta uma boa base de dados acerca do número total de estudantes cotistas matriculados hoje. O que existem são estimativas amparadas por dados do Sistema Integrado de Seleção Unificada (Sisu) e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Apesar disso, outras pesquisas menos amplas permitem observar os avanços provocados pela Lei. O Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas 2022 divulgou que, de 2001 a 2022, houve um crescimento de 20% da participação de pretos e pardos nas universidades e institutos federais, chegando a compor mais de 50% do corpo discente. Já o número de indígenas subiu de 2370, em 2012, para 9685, em 2020, segundo o último Censo do Ensino Superior.

Maria Rita Py Dutra.
Crédito: arquivo pessoal.

Maria Rita Py Dutra, doutora em educação, ativista do movimento negro e uma das responsáveis pela implementação da Lei de Cotas na UFSM, comenta sobre a importância da inserção de negros e negras na universidade: ‘’Pretos e pardos enriquecem o ambiente universitário, pois chegam carregando valores culturais até então pouco conhecidos. É uma excelente oportunidade para começarmos a formar pesquisadores negros, conhecedores da causa negra, que poderão se dedicar à temática afro, com pesquisas no campo da religiosidade de matriz africana, construção da identidade negra, genocídio da juventude negra, sobre a mulher negra e sexualidade, racismo e justiça, temas que nos são caros e que requerem identificação, compromisso ético e político’’.

Ela expõe que, no início dos anos 2000, o percentual de negros na UFSM chegava a pouco menos de 3% do total de estudantes, número que, em 2015, subiu para 11,52%. Contudo, apesar do avanço gradual da presença de grupos étnicos diversos no corpo discente universitário, Maria Rita reforça que é necessário que professores negros e indígenas também ocupem o ambiente acadêmico: ‘’É preciso formar um quadro de docentes universitários negros, para atender a demanda dos estudantes que estão chegando, mas acima de tudo para enriquecer o ambiente universitário, trazendo para a academia valores civilizatórios negros, como: ancestralidade, circularidade, religiosidade, memória, oralidade, ludicidade, musicalidade, corporeidade, cooperativismo, força vital/Axé.’’

Em relação ao ingresso de pessoas com deficiência no ensino superior público, de 26663 alunos matriculados em 2012, progrediu-se para 43633 em 2018, conforme Censo Superior da Educação de 2018.

Movimento anti-cotas

Ainda que pareçam óbvios os motivos pelos quais as cotas raciais foram implementadas no país, uma parcela significativa da população foi contra a promulgação da lei em 2012. Em Santa Maria, o assunto polarizou a cidade entre aqueles que argumentavam que as cotas serviriam para promover a equidade racial e os que defendiam a ideia de que cotas seriam uma forma de roubar vagas de um grupo de pessoas por outro. Para quem era contrário às ações afirmativas, o discurso dominante era baseado no conceito de meritocracia, segundo o qual alunos cotistas não estariam no mesmo nível que os demais, fazendo com que os cursos universitários perdessem qualidade de ensino.

No ano em que a Lei de Cotas viria a ser promulgada, em 2012, iniciou-se um movimento anti-cotas no cenário nacional, que exigia o veto ao projeto pela então presidenta Dilma Rousseff. Em Santa Maria, estudantes de escolas particulares, pais e empresários promoveram protestos contra a implementação das cotas na UFSM. O movimento ficou marcado pelos ‘’caras pintadas’’, que, em 15 de agosto de 2012, foram às ruas da cidade gritar que cotas geram ainda mais preconceito.

Contrapondo este grupo, integrantes do Diretório Central dos Estudantes (DCE-UFSM), da Seção Sindical dos Docentes da UFSM (SEDUFSM), da Associação dos Servidores da UFSM (ASSUFSM), do Museu Treze de Maio e de entidades da sociedade civil realizaram uma aula pública, no mesmo mês dos protestos, na Praça Saldanha Marinho, explicando sobre a legitimidade das cotas. Nesse sentido, os movimentos negro e indígena desempenharam papel fundamental na defesa da implementação da Lei, não somente em Santa Maria, mas em toda região em que se fez necessário combater o intitulado ‘’exército contra as cotas’’.

Ainda é comum ouvirmos discursos contrários a projetos de incentivo a melhorias na qualidade de vida de grupos socialmente prejudicados, em consequência do desconhecimento acerca dos motivos históricos e estruturais que levaram à elaboração de tais propostas. O Brasil é o país em que a escravidão permaneceu por mais tempo em vigor: de 1500 a 1900, 4,86 milhões de escravizados desembarcaram no território brasileiro, mais do que em qualquer outra nação, segundo o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos. Após esse período, nenhuma forma de inserção social foi estimulada pelo Estado, o que fez com que os negros permanecessem sem oportunidades de ascender social, econômica e educacionalmente. A mesma lógica se aplica aos povos indígenas, que também sofreram com a escravidão e com o extermínio de sua cultura e população.

Portanto, a adoção de ações afirmativas nas universidades federais representa um dos primeiros meios de reparação histórica promovida no Brasil, por isso sendo tão importante e relevante para os grupos minoritários.

Problemas que persistem

Apesar dos avanços expressivos estabelecidos pela Lei de Cotas, é necessário que outras ações de estímulo à permanência dos estudantes cotistas na universidade sejam implementadas. Dentre elas, cabe ressaltar a distribuição de bolsas de estudo e auxílios econômicos aos discentes mais pobres. Para além disso, é preciso que se forneça maior publicidade à Lei, haja vista que muitos alunos a desconhecem ou não se consideram capazes de participar da concorrência.

Suelen Aires Gonçalves.
Crédito: arquivo pessoal.

Para Suelen Aires Gonçalves, socióloga, ex-aluna da UFSM e militante do movimento negro, as instituições de ensino deveriam criar uma política de mudança estrutural nos currículos dos cursos, tanto de graduação, como de pós, a fim de promover a diversidade e a inclusão no campus.

‘’As mudanças estruturais necessitam de implementação de políticas de ações afirmativas e avanços para demais áreas como na pós-graduação e nos concursos. Sem tal alteração podemos não avançar na mudança das desigualdades presentes na estrutura brasileira’’, esclarece Suelen.

Texto: Laurent Keller

Edição: Bruna Homrich

Foto de capa: Vicente Solar

Laurent Keller

Estudante de jornalismo.

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