Entraves da Portaria nº 983 são discutidos em live promovida pelo Sinasefe-SM

 Entraves da Portaria nº 983 são discutidos em live promovida pelo Sinasefe-SM

Na última quinta-feira, 21, o Sinasefe Santa Maria realizou uma live em conjunto com sindicalizados do IFFar de Jaguari para discutir as consequências problemáticas que a Portaria nº 983/2020 traz para a educação federal. Dentre os principais pontos debatidos, ganharam maior destaque: o aumento da carga horária mínima de trabalho; a desvalorização das atividades de pesquisa e extensão; e os prejuízos à autonomia dos Institutos Federais. Mais de cem pessoas acompanharam o debate ao vivo, que segue disponível para visualização no canal de Youtube do Sinasefe Santa Maria.

O encontro virtual contou com a mediação de Lucas Flores, docente do IFFar – campus de Jaguari, e com mais quatro participantes: Carla Jardim, ex-reitora do IFFarroupilha; Carlos Rodrigo Lehn, pró-reitor de Desenvolvimento Institucional do IFFar e coordenador do grupo de trabalho que regulamentará a Portaria na instituição; Jeferson Queiroz, presidente da Comissão Permanente de Pessoal Docente (CPPD) do IFFar; e Heverton Padilha, assessor jurídico do escritório Wagner Advogados.

Inicialmente, Carla Jardim destaca o aumento excessivo da carga horária mínima estabelecida pela Portaria nº 983, que até então era de oito horas (segundo a Portaria nº17), e passou para 14 horas relógio. Para a ex-reitora, além desse acréscimo causar uma sobrecarga nos professores, ele também prejudica as demais dimensões da atividade docente, como a pesquisa e a extensão, uma vez que os profissionais passam a deter menos tempo para dedicarem a essas tarefas.

Outro ponto levantado por Carla diz respeito à falta de diálogo entre servidores federais e o Ministério da Educação (MEC), que tem tomado decisões sem consultar docentes com frequência. Sobre tal aspecto, ela expõe: “há algum tempo, foi composto um grupo de trabalho com representação do próprio CONIF para promover uma discussão com a Rede Federal sobre as questões da regulamentação da atividade docente, que inclui, para além de carga horária mínima e máxima, todas as outras dimensões do trabalho docente, como a pesquisa, a extensão, a gestão e as atividades de representação. E esse grupo de trabalho foi totalmente desconsiderado. Tivemos a alteração da Portaria nº17 por meio de um ato formal do Ministro da Educação, sem que a nossa Rede Federal fosse chamada a participar, a discutir e a contribuir com essa normativa. Mas isso não pode surpreender a nenhum de nós, porque essa Portaria é mais um ataque deste governo aos Institutos Federais, e ela vem no sentido de restringir a ação docente às atividades de ensino”.

Ainda a respeito do tipo de posição adotada pelo governo atual, a professora comenta que a Portaria nº 983 não é um acontecimento isolado, mas integra “[…] uma engrenagem enorme que compõe o projeto de governo, ou projeto de desgoverno, existente desde que esse governo se estabeleceu”.

“A portaria é mais um elemento que se soma ao trabalho árduo que está acontecendo para destruir as carreiras dos serviços públicos e das conquistas dos trabalhadores. Ela se soma à reforma trabalhista, que precarizou ainda mais o trabalho em nosso país; se soma à reforma previdenciária, que trouxe inúmeras perdas para os trabalhadores de forma geral; se soma à reforma administrativa, que ainda não é algo dado, mas que está em curso; e se pensarmos nos institutos federais, se soma a um conjunto de tantos outros ataques, como por exemplo: reitores e reitoras eleitos e não empossados dentro do prazo, sem qualquer justificativa; tivemos a medida provisória 914, que alterou o processo eleitoral nos institutos, instituindo a lista tríplice.’’

Ao final de sua fala, Carla Jardim reforça a importância de que todos os docentes se unam contra essas tantas medidas regressistas, para que os avanços conquistados pelos servidores públicos ao longo dos anos não sejam perdidos.

Inconsistências jurídicas

O assessor jurídico Heverton Padilha trouxe ao debate uma série de questões problemáticas envolvendo aspectos técnicos da Portaria nº 983, como sua não capacidade de regulamentar a atividade docente tecnicamente.

‘’Primeiro porque a Portaria acaba em muitos pontos inovando no mundo jurídico, ou contrariando normas hierarquicamente superiores, subvertendo muitas vezes a sua própria natureza como ato normativo. Segundo porque ela é dotada de péssima técnica legislativa, faz referência a itens que não constam no texto, além de afrontar a autonomia gerencial didático-pedagógica das Instituições Federais de ensino. Além disso, impõe um excessivo e demasiado tempo de horas aula aos professores EBTT, muitas vezes impedindo o cumprimento de outras atividades igualmente institucionais, tais como a pesquisa e a extensão”, explica o assessor.  Além disso, ele acrescentou que “[…] há erros formais, há indicações de alíneas que não existem e isso certamente pode causar alguma confusão no intérprete.’’

Padilha também comenta que o MEC possui a função de supervisão das instituições de ensino, mas não é autorizado a intervir diretamente nas esferas administrativas, assim como pretende a Portaria.

“A Portaria nº 983 traz outras questões bastante importantes, como a mediação pedagógica, porque conceitos que já existem foram introduzidos na Portaria com outra conotação. A portaria trata a mediação pedagógica como atuação docente no processo de ensino a distância com a promoção de espaços de construção colaborativa do conhecimento, a participação nos processos avaliativos, orientação e correção de atividades, entre outros. Há aqui uma imprecisão técnica cometida pela própria Portaria, quando ela se refere à mediação pedagógica como parte integrante da ação docente, quando, na verdade, ela é uma ferramenta utilizada para o exercício da docência.

Aponta-se ainda que, ao desvirtuar a conceituação de mediação pedagógica, a Portaria busca incluir o ensino a distância como elemento fundamental para a atividade docente. Então, veja o oportunismo dessa Portaria, aproveitando-se do momento de pandemia, o governo tenta utilizar o período que nos colocou em casa para imputar a questão do ensino a distância como fundamental”.

Ainda em relação às alterações propostas pela Portaria, Padilha comenta que o documento ignora as atribuições docentes para além da atividade em sala de aula, ao regulamentar a atividade docente em horas de 60 minutos, hora relógio, no lugar da hora aula. “[…] É importante ressaltar que a hora aula deve ser distinta da hora relógio, por uma série de motivos óbvios que qualquer professor tem em mente. O trabalho docente não se resume ao executado em sala de aula; existe todo um conjunto de atividades que necessitam ser realizadas e todas são notadamente previstas no projeto pedagógico de cada instituição.’’

Para compreender em mais detalhes os aspectos técnicos da Portaria, acesse a nota técnica feita pela assessoria jurídica do Sinasefe.

Projeto de governo

Assim como Carla, Jeferson Queiroz também destacou que a Portaria nº 983 integra um projeto maior de desmonte da educação federal, do Estado Brasileiro e dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Caminha ao lado, por exemplo, da Reforma do Ensino Médio, da proposta de reordenação dos Institutos Federais, da Reforma Trabalhista, da Reforma da Previdência e da Reforma Administrativa (PEC 32).

Ainda que num primeiro momento o texto da Portaria nº 983 pareça prezar pela preservação do tripé ensino, pesquisa e extensão – constitutivo das universidades e institutos federais -, na prática o seu conteúdo fere frontalmente esse princípio. Isso porque, ao elevar a carga horária das antigas 8 para 14 horas, acaba por inviabilizar que o docente se dedique a quaisquer outras atividades que não sejam diretamente vinculadas ao ensino, abrindo largo caminho para que a formação assuma tendências cada vez mais tecnicistas.

“Não que o ensino não seja importante. Mas não podemos esquecer a nossa essência, a lei que criou os institutos federais, e que prevê o tripé ensino, pesquisa e extensão. Tanto a lei nº 12.772 quanto a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) trazem que quem vai tratar dos limites mínimos e superiores da carga horária é a instituição. Não podemos simplesmente baixar a cabeça para um governo desses e perder sua autonomia. Se seguirmos a portaria e não lutarmos contra ela, ela ferirá a autonomia da instituição”, disse Queiroz.

Ele alerta para o fato de que a portaria conserva uma concepção bastante reducionista da atividade docente de ensino, desconsiderando o fato de que não se trata apenas das horas passadas em sala de aula, mas do planejamento prévio de tais aulas, da preparação dos materiais, do atendimento aos alunos, das correções e avaliações do processo educativo e, muitas vezes, das estratégias a serem traçadas pelos docentes para promover aproximação entre estudantes que estejam com diferentes níveis de apropriação dos conteúdos.

“Com essa portaria, isso vai ser impossível. Nós iremos simplesmente entrar numa porta da sala e sair pela outra. Cadê a preocupação com o desenvolvimento integral dos nossos alunos? Hoje os institutos federais são reconhecidos por sua excelência e qualidade no ensino. Temos que lutar para não perder isso”, preocupa-se Queiroz.

Para o docente, é extremamente importante que a comunidade do Instituto Federal Farroupilha e dos demais institutos posicione-se frontalmente contrária a essa portaria e, ao mesmo tempo, participe da construção de um novo documento, em conjunto com as Comissões Permanentes de Pessoal Docente (CPPD) e com as gestões locais. Pensar a regulamentação das atividades docentes de forma coletiva e preservar, neste processo, a autonomia das instituições de ensino. Essa é a tarefa do momento, garante o presidente da CPPD do IFFar.

A importância da extensão

Carlos Lehn iniciou sua carreira no Instituto Federal de Mato Grosso do Sul (campus Coxim) e, lá, teve contato com o projeto de extensão desenvolvido por um aluno que, à época, era bolsista de iniciação científica. Tendo acompanhado, desde a infância, seu pai, que era vendedor de caldo de cana, o estudante nunca compreendeu porque, ao final do dia de trabalho, era necessário jogar fora todo o caldo de cana que não havia sido vendido. Ele não entendia porque se gastava recursos materiais e humanos em um produto que não poderia ser conservado por mais de 24 horas. Quando ingressou no instituto, então, em parceria com seu orientador, ele desenvolveu uma forma de, por meio da pasteurização e em condições de refrigeração, conservar o caldo de cana por até cinco dias. Com esse projeto, ele melhorou a vida de sua família e ajudou, também, a combater um problema de saúde pública chamado Doença de Chagas, que pode ser transmitida pelo caldo de cana.

Carlos citou o exemplo deste estudante para ilustrar a importância de os institutos voltarem suas atenções para atividades extensionistas – exatamente o que está sob ameaça com a portaria nº 983.

“Para além de avançar sobre a questão da autonomia administrativa que as organizações de ensino possuem, a portaria interfere diretamente naquilo que é a essência de atuação da rede federal, que são ações de ensino, pesquisa e extensão. Isso tudo foi construído com esforço enorme ao longo desses 13 anos da rede federal”, ponderou o pró-reitor do IFFar.

Ele também teceu críticas ao caráter impositivo da portaria, construída sem diálogo com os setores envolvidos. Contudo, ainda que o conteúdo da portaria seja problemático, Carlos defende que a comunidade precisa se envolver em sua discussão, de forma ampla, democrática e sem atropelos.

“Existe um movimento bem articulado que engloba a portaria 983, o reordenamento dos institutos federal, o PL 1453, e que visa a desconstruir tudo que foi feito desde 2008 e que hoje é a identidade da rede federal”, conclui.

Assista a live na íntegra neste link: https://www.youtube.com/watch?v=_6W4S__jlHY&t=3437s

Bruna Homrich e Laurent Keller

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