Como vem sendo a implementação do Novo Ensino Médio nos colégios federais de Santa Maria?
O Novo Ensino Médio (NEM) deve começar a ser implementado nas escolas públicas e privadas do país, neste ano de 2022. Advindo da Medida Provisória (MP) 746/2016, proposta pelo governo de Michel Temer e que em menos de seis meses foi convertida na Lei nº 13.415/017, o projeto enfrentou – e ainda enfrenta – duras críticas por parte de entidades ligadas à Educação, tendo sido inclusive uma das pautas a motivar as ocupações secundaristas há cerca de cinco anos.
Na prática, o Novo Ensino Médio alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), determinando mudanças especialmente nos componentes curriculares e na carga horária de colégios país afora. Agora, a carga horária deve ser dividida entre os componentes curriculares da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e os itinerários formativos voltados ao mercado de trabalho. Com a BNCC, as disciplinas concebidas como obrigatórias durante os três anos do ensino médio passaram de português, matemática, artes, educação física, filosofia e sociologia para apenas português e matemática. Dentre tantas consequências desta mudança, uma diz respeito à sobrecarga de trabalho observada nas rotinas de professores e professoras destas duas disciplinas. É o que explica Adriana Bonumá, Secretária de Assuntos Legislativos e Jurídicos do Sinasefe Santa Maria e professora de língua portuguesa do Colégio Militar de Santa Maria.
Ela conta que, em sua escola, o Novo Ensino Médio começou a ser implementado ainda em 2021, após debates realizados na Diretoria de Educação Preparatória e Assistencial (DEPA), que define e centraliza as ações a serem implementadas nos 14 colégios militares brasileiros. Ao invés de o debate sobre o assunto ser capilarizado para toda a comunidade escolar, dele participaram apenas um representante de cada área do conhecimento: linguagens, exatas, ciências biológicas e humanas, além de gestores(as). Das reuniões, ocorridas de forma virtual, originou-se o novo programa a ser seguido pelos Colégios Militares.
Ainda em implementação, o Novo Ensino Médio no Colégio Militar de Santa Maria tem funcionado da seguinte forma: de segunda a quarta-feira são lecionados os componentes previstos na BNCC; e às quintas e às sextas-feiras são reservadas os itinerários formativos. Há dois itinerários: o das Carreiras Militares (CAMil) e o das Carreiras Universitárias (CAUni). Até então, tal divisão vem sendo aplicada aos segundos e terceiros anos do Ensino Médio, devendo ser implementada nos primeiros anos do Ensino Médio a partir de 2023.
Adriana explica que o itinerário CAUni envolve basicamente as mesmas disciplinas previstas na Base Comum, porém trabalhadas com foco na aprovação dos alunos e alunas em processos seletivos como Enem e alguns vestibulares. Já o CAMil abrange as disciplinas cobradas em concursos das carreiras militares, a exemplo da EsPCEx (Escola Preparatória de Cadetes do Exército), da AFA (Academia da Força Aérea), do IME (Instituto Militar de Engenharia) e do CPAEN (Escola Naval).
“No Colégio Militar, esses itinerários não provocaram grandes alterações curriculares. A alteração foi no aumento de carga horária de algumas disciplinas, como português e matemática, e na forma como elas são trabalhadas com o aluno, focando em carreiras militares e carreiras universitárias. Os professores em geral estão com carga horária bastante alta. Estamos sendo bastante sacrificados, com uma quantia de aulas bem maior e com diferentes conteúdos e aulas a serem preparadas. Então temos, na verdade, com os dois itinerários e a BNCC, três currículos diferentes, em que os conteúdos não batem. Isso acarreta em um aumento de burocracia, de avaliações, de carga horária. E isso é prejudicial. Claro que a qualidade tende a diminuir”, preocupa-se Adriana.
Por serem consideradas as disciplinas obrigatórias pela nova BNCC, português e matemática tiveram aumento de carga horária, sem, contudo, haver contratação de novos professores e professoras para darem conta da demanda.
“Temos pouco mais de 200 dias letivos contabilizados. Passamos de 6 para 7 tempos trabalhados no turno da manhã. Com esse aumento em um tempo, foi reduzido cinco minutos de cada aula. Então temos aulas de 40 minutos e não mais de 45 minutos”, exemplifica a dirigente do Sinasefe Santa Maria.
O Novo Ensino Médio não será o mesmo para todos
Ainda que no Colégio Militar o NEM não tenha trazido tantas consequências e alterações curriculares, Adriana pondera que as mudanças tendem a ser bastante prejudiciais quando se leva em conta a totalidade da educação – especialmente a pública – no Brasil.
“A escola pública não tem condições físicas e logísticas de acomodar um aumento tão vertiginoso de carga horária, e ao mesmo tempo não se sabe que condições a escola pública vai ter de oferecer diferentes itinerários com diferentes cursos profissionalizantes. Acredito que essa reforma tende a aumentar ainda mais o abismo que a gente observa dentro da educação, levando em conta escolas públicas e escolas privadas”, explica a professora e dirigente sindical. Além de escolas públicas e privadas terem diferentes condições de aplicar as mudanças, o Novo Ensino Médio também pode acirrar as desigualdades de formação entre as regiões mais desenvolvidas e as mais empobrecidas do país.
Opinião semelhante tem Deivis Jhones Garlet, diretor do departamento de Ensino do Colégio Técnico Industrial de Santa Maria (CTISM), para quem o Novo Ensino Médio sedimenta duas possibilidades de formação: uma de curta duração, voltada ao ensino profissionalizante, primordialmente ofertado no formato Ensino a Distância (EaD) por empresas ou profissionais de “notório saber”; e uma de maior continuidade, visando, por exemplo, ao ingresso no ensino superior. A primeira tenderia a ser reservada aos segmentos mais vulneráveis da sociedade, ao passo que a segunda, às parcelas mais favorecidas.
“Pedagogicamente, o NEM expressa uma concepção dualista de sociedade e, por extensão, de educação, alicerçada em um projeto político e econômico que opera o amálgama entre tendências liberais, conservadoras e autoritárias, cujo objetivo, em última instância, se traduz na reprodução e manutenção do capital. A propalada “liberdade de escolha” do aluno diante de itinerários variados se reveste de mera aparência, a qual oculta o fato de que os itinerários deverão – obrigatoriamente – ocupar a maior parte da carga horária dos três anos do Ensino Médio, cuja previsão é de que chegue a 4.200h. Dessas, apenas 1800h poderão ser destinadas à formação geral. Assim, a “liberdade de escolha” implica em abrir mão, obrigatoriamente, de uma formação geral consistente – a qual continuará a ser o foco no ensino privado”, comenta Garlet, reforçando o cenário sugerido por Adriana de que o Novo Ensino Médio aprofundará o abismo existente entre as escolas públicas e privadas, pois essas terão condições diferentes de aplicação dos novos programas.
Outra questão levantada pelo diretor de Ensino do CTISM é a necessidade de que um projeto tal como o do Novo Ensino Médio viesse acompanhado de uma complementação orçamentária para as escolas públicas conseguirem dar conta do aumento da carga horária e das várias implicações que isso traz. Contudo, a realidade vem sinalizando o contrário: ao invés de fortalecer as verbas destinadas à educação, o governo Bolsonaro tem estrangulado o orçamento das escolas e universidades, levando a que muitas instituições, inclusive, vejam-se em dúvida sobre a possibilidade de darem sequência às suas atividades.
“[…] sem previsão de investimentos adequados para a educação do aluno em tempo integral (refeitórios e outros espaços), além de recursos humanos para a possibilidade de oferta de todos os itinerários formativos em todas as escolas, a “escolha dos alunos” ficará restrita à capacidade de oferta da escola”, preocupa-se Garlet.
O Novo Ensino Médio no CTISM
Desde 2019, o CTISM promove discussões sobre o Novo Ensino Médio, a BNCC e o PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático). É o que partilha Garlet, comentando que, de início, fora elaborado um plano de estudo das novas legislações aprovadas pelo governo federal da época e das consequências que poderiam trazer para o cotidiano das comunidades escolares. Quem se imbuiu, num primeiro momento, da tarefa de estudar tais documentos foi a equipe pedagógica do Departamento de Ensino do colégio.
Nos anos de 2020 e 2021, tal debate foi ampliado e alcançou setores como a Coordenadoria de Educação Básica, Técnica e Tecnológica (CEBTT), a Direção Geral do CTISM, o Colégio Politécnico, a Coordenadoria Regional de Educação e os Institutos Federais próximos de Santa Maria. Foi realizada, então, entre essas entidades e representações, uma série de reuniões para que compartilhassem compreensões sobre as novas leis e possibilidades de implementá-las.
Contudo, Garlet frisa que os anos de 2020 e 2021 foram atravessados pela pandemia e pela suspensão da presencialidade nas instituições federais de ensino, o que freou as possibilidades de uma discussão ampliada acerca do Novo Ensino Médio com estudantes, docentes e técnico-administrativos em educação. Tal debate, perspectiva o diretor, deve ser realizado neste ano de 2022.
Organização curricular no CTISM
Garlet explica que algumas das exigências do Novo Ensino Médio já estão atendidas na organização curricular dos cursos ofertados pelo CTISM. Exemplo é o itinerário formativo dos cursos técnicos integrados ao Ensino Médio, solicitado pela nova lei e previamente existente no colégio, necessitando, apenas, de correção em sua nomenclatura.
Quanto aos livros a serem utilizados pelo programa do Novo Ensino Médio, Garlet comenta que o PNLD disponibilizou obras didáticas que atendem aos componentes da BNCC e, por consequência, do Novo Ensino Médio.
“Outros elementos presentes na nova legislação, a exemplo da carga horária mínima, da obrigatoriedade de Língua Portuguesa e Matemática nos três anos, de Inglês como língua estrangeira, de oferta de formação de competências na área computacional, já estão vigentes nos PPCs dos cursos. Apesar disso, projeta-se para este ano uma discussão ampliada – com toda comunidade escolar – sobre outros ajustes necessários e atualização ou correção dos PPCs”, perspectiva Garlet.
Ele ainda lembra que vem sendo ventilada, no âmbito da UFSM, a possibilidade de retorno do processo seletivo seriado (aos moldes do que era o PEIES). Se isso acontecer, a Proposta Pedagógica Curricular (PPC) deverá ser alterada para abarcar os conteúdos a serem cobrados, de cada um dos anos do Ensino Médio, pelo processo seletivo da instituição.
O Novo Ensino Médio no Politécnico
No Colégio Politécnico da UFSM, as discussões sobre o Novo Ensino Médio tiveram início ainda no final de 2018, tendo sequência em 2019, quando um grupo de professores, acompanhados da Direção de Ensino e da Direção do Colégio, aprimorou os debates especialmente acerca do Texto Base da BNCC, da Resolução nº 03/2018 e das legislações que acompanham as mudanças previstas no novo programa.
Moacir Bolzan, vice-diretor do Politécnico, conta também que, paralelamente às discussões internas, ocorriam, semanalmente, reuniões em conjunto com o Centro de Educação, a 8ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) e um grupo de Direções de Escolas. O objetivo desses encontros era o de elaborar um plano piloto de implantação do Novo Ensino Médio em 10 escolas estaduais fixadas na área de abrangência da CRE.
“Além disso, foram realizadas assembleias com todos os alunos do Colégio para esclarecê-los sobre a Reforma e colher as impressões deles sobre o tema. Mesmo no período da pandemia, o grupo de professores e Direções seguiu os trabalhos e a proposta foi concluída, sendo aprovada por todas as instâncias administrativas (sem reparos) da UFSM”, acrescenta Bolzan.
Ele explica que o Novo Ensino Médio já vem sendo implementado no Politécnico, para a primeira série, desde o início do ano letivo de 2021, com o itinerário integrado que contempla todas as áreas de conhecimento. Agora, as mudanças devem atingir os segundos e terceiros anos.
Em sua concepção, o maior desafio será a vinculação das chamadas ‘competências e habilidades’ com os conteúdos já lecionados. Bolzan explica:
“Arrastamos uma sólida convicção de que competência está somente ligada aos recursos cognitivos que mobilizamos (comparar, analisar…). Na verdade, é mais do que isso, e precisa estar relacionada à solução de desafios, porque as competências que precisamos desenvolver dependem dos contextos e das condições sociais em que vivemos. As competências que a escola irá priorizar na formação básica devem estar alinhadas com os desafios das práticas sociais, com foco no protagonismo do aluno”.
Tendo em vista o percurso dos debates feitos até então e a forma como o colégio vem implementando o Novo Ensino Médio, Bolzan assume uma postura otimista: “Nesse contexto seguro de construção da nossa proposta, tenho a convicção de que atuaremos numa concepção de educação integral de sujeitos e em condições de configurar um perfil de ensino que supere, de longe, as fragilidades da proposta da reforma que nos foi apresentada […] Também é oportuno destacar que a proposta do Ensino Médio do Colégio contemplou projetos Colaborativos, estruturados com a possibilidade de utilizar a força de trabalho diversificada que temos na Instituição e atuando de maneira muito ativa em vários cursos, níveis e modalidades de ensino. Isso tudo aliado a uma condição favorável de infraestrutura que dispomos”.
Ainda que Politécnico, CTISM e Colégio Militar sejam públicos, sabe-se que suas condições de infraestrutura e corpo funcional são bastante diferentes daquelas observadas na grande maioria das escolas públicas brasileiras.
Governo não ouviu educadores
Se em alguns colégios, a exemplo do CTISM e do Politécnico, as comunidades desdobraram-se para conseguirem ampliar, o máximo possível e em meio a uma pandemia, o debate sobre o Novo Ensino Médio, tal disposição não foi observada nem pelo governo Temer, nem pelo governo Bolsonaro. Uma das principais críticas feitas tanto pelo Sinasefe quanto por outras entidades ligadas à educação é de que a proposta do Novo Ensino Médio foi construída à revelia das necessidades concretas da educação brasileira e sem uma consulta ampla e democrática aos principais atores envolvidos no processo de ensino e aprendizagem: professores e estudantes.
“Concordo com a maioria das críticas que estão sendo feitas à proposta da reforma, porque não ocorreu uma discussão mais ampla e apropriada com a sociedade e nem uma participação mais efetiva dos docentes. No entanto, a proposta construída pelo Colégio não repetiu esses equívocos e ela sintetiza uma construção a partir da nossa realidade”, defende Bolzan, referindo-se à proposta elaborada pela comunidade do Politécnico.
Garlet classifica a falta de diálogo do governo como um “vício de origem” na legislação que institui o Novo Ensino Médio. Para ele, o modo como a MP 746 converteu-se em lei foi “unilateral e arbitrário”.
Sindicatos ligados à área da educação apontam como problemáticas a redução das disciplinas ligadas às áreas humanas, a introdução de uma visão tecnicista de educação e as desigualdades que o Novo Ensino Médio tende a acarretar entre escolas públicas e privadas, ou mesmo entre regiões mais pobres e mais desenvolvidas do país. O governo, por sua vez, justificou as alterações no ensino médio como uma forma de conceder mais autonomia aos estudantes, tornar o ensino mais atrativo e diminuir a evasão.
Para Garlet, contudo, a nova lei está longe de resolver os gargalos da educação brasileira.
“Seguramente, problemas como a evasão se resolvem com investimentos sociais (diminuição de problemas sociais, como a miséria, a fome, as desigualdades de renda) e valorização da educação, desde a infraestrutura das escolas até os servidores, com planos de capacitação, de qualificação, de salários e de carreira atraentes”, opina o diretor.
Ao não contemplar nenhum dos aspectos acima, a chamada Reforma do Ensino Médio não reduziria os problemas.
“O Governo – e o MEC – realizaram uma interpretação sem fundamentação teórica ou metodológica acerca dos números de evasão e de desempenho dos estudantes, não abriram o diálogo com as comunidades escolares e, tampouco, com organizações de base e especialistas, configurando uma tomada de decisão arbitrária (considere-se que, em pesquisa on-line promovida pelo Senado, mais de 70 mil votos foram contrários à reforma e pouco mais de 4 mil foram favoráveis) e que reforça o dualismo de classe na educação”, conclui Garlet.
Sinasefe debate o Novo Ensino Médio
Figura central na oposição ao projeto de Reforma do Ensino Médio desde sua origem, o Sinasefe segue vigilante com relação à forma como a nova lei tem sido implementada nos colégios federais país afora. Na penúltima Plenária Nacional, por exemplo, foi solicitado que as seções sindicais enviem informações acerca de como estão os processos de implementação do Novo Ensino Médio em suas bases.
Crédito Imagem 1: Daniel Mello/Agência Brasil
Crédito Imagem 2: Agência Brasil