Professores(as) da UFSM reforçam centralidade da escola para processo educativo
Tanto família quanto escola são ambientes importantes à formação de crianças e adolescentes. Ocorre que cada um desses espaços tem sua função a cumprir, no que tange às responsabilidades e às competências educativas que preservam. A avaliação é da professora da Unidade de Educação Infantil Ipê Amarelo da UFSM, Juliana Goelzer, para quem os profissionais com formação específica para atuação no processo educativo são os professores. Assim, negar às crianças e adolescentes o acesso a instituições específicas e profissionais capacitados é privá-las de um direito previsto na própria legislação brasileira.
Mas é justamente esse enfraquecimento do ambiente escolar o principal objetivo do projeto que institui a educação domiciliar (homeschooling) no Brasil. Apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro como uma de suas principais promessas eleitorais, a educação domiciliar vem sendo defendida especialmente por setores conservadores da sociedade brasileira, que veem, na escola, uma ameaça aos valores considerados ‘tradicionais’.
Para Juliana, “substituir a educação escolar pela domiciliar é privar a criança e o adolescente da socialização mais ampla, do encontro com a diversidade, do acesso a novos e outros conhecimentos, ou seja, é proporcionar a eles o encontro apenas com aquilo que a família deseja para eles, e não com o universo mais amplo, com as diferenças, com a pluralidade. Um projeto assim parte do pressuposto de que as crianças e adolescentes necessitam apenas de “conteúdos escolares” em seu processo de aprendizagem e desenvolvimento, diminuindo sobremaneira todos os aspectos que fazem parte do processo educativo, que inclui aprender a relacionar-se com o outro, com um grupo, com uma comunidade e com o mundo, a posicionar-se, a confiar em si e nas suas potencialidades, a respeitar o outro e a diversidade de opiniões, ou seja, a mover-se nesse mundo tão diverso e plural”.
Segundo o Projeto de Lei (PL) 3.179/2012, aprovado pela Câmara dos Deputados em 18 de maio, todas as etapas da Educação Básica (Ensino Infantil, Fundamental e Médio) poderão ser ofertadas em casa ou em demais locais privados, sob tutela de pais, mães ou responsáveis legais. Agora, a matéria tramita no Senado.
A ideia contida no projeto não é nova no Brasil. Como explica o vice-diretor do Colégio Politécnico da UFSM, Moacir Bolzan, a defesa do homeschooling encontra, nas leis brasileiras, uma série de entraves, visto que, hoje, constitucionalmente, é obrigação do Estado oferecer escolas e obrigação dos pais e responsáveis garantir que seus filhos frequentem as escolas. Não há, até então, brecha legal para a instituição da educação domiciliar.
Uma educação integral só ocorre na escola
Na escola, a criança e o adolescente são apresentados a uma ampla gama de conteúdos, que abarcam as mais diversas áreas do conhecimento, dialogam entre si e permitem que se enxergue o mundo não como fragmentos dispersos e aleatórios, mas como uma totalidade de experiências e fenômenos que se complementam.
Bolzan pondera que todos esses conteúdos compõem a trajetória do cidadão, desde aqueles vinculados à competência cognitiva (a exemplo dos conteúdos concernentes à ciência e intelectualidade) até aqueles vinculados à competência produtiva (pinçados do mundo do trabalho e trazidos para dentro das escolas como elementos fundamentais para as experiências práticas que as e os estudantes terão futuramente, no campo de suas profissões).
“Há também os conteúdos sociais, indispensáveis na construção da competência relacional. Nessas circunstâncias, as relações com o outro não são de submetê-lo, mas de reconhecê-lo, considerando um processo para além da perspectiva econômica e competitiva, mas, sobretudo, social e colaborativa. E os conteúdos, exclusivamente individuais, que geram a competência pessoal. Inclui-se neles as atitudes que atribuem para o desenvolvimento total do ser humano (corpo, espírito, emoção e mente)”, explica Bolzan.
Tendo em vista tal percepção acerca da multiplicidade dos conteúdos a serem lecionados, aprendidos e internalizados no ambiente escolar, o professor do Colégio Politécnico não acredita que a família, tal como preconiza o projeto do homeschooling, tenha infraestrutura e capacidade para proporcionar uma educação integral com domínio de todos esses saberes e competências.
[…] Se a Escola é capaz de articular uma diversidade de conteúdos e proporcionar ao estudante a aquisição de múltiplas competências, atribui-se a esta Instituição um papel relevante na mediação das ações entre a Família e a Sociedade. A socialização proporcionada pela Escola é fundamental na construção da autonomia dos sujeitos, na convivência com o outro e no aprendizado das amizades. É inimaginável que a Família seja a única Instituição a fazer parte da vida de um estudante e lhe proporcione de maneira equilibrada as experiências de uma educação integral. Família e Escola devem se complementar”
conclui Bolzan
O ensino domiciliar na Educação Infantil
Se o ensino domiciliar penaliza as e os estudantes, tais desdobramentos negativos são ainda piores na Educação Infantil. Juliana Goelzer ressalta que a Educação Infantil está definida, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010), como a “Primeira etapa da educação básica, oferecida em creches e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social” (BRASIL, 2010, p.12).
Em tais Diretrizes também está atestado que “As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira” (ibid, p. 25).
Ou seja, retirar a criança da escola é afrontar a legislação. Para Juliana, as crianças de 0 a 5 anos e 11 meses necessitam do contexto de interação e brincadeira propiciado pela escola, visto que lá podem desenvolver os aspectos físicos, psicológicos, intelectuais, sociais e culturais de suas personalidades. Referenciando o educador italiano Lois Malaguzzi, idealizador da proposta educacionais de Reggio Emilia, Juliana complementa que a escola permite que as crianças expressem seus sentimentos e emoções em diversas linguagens – plástica, oral, escrita, musical, digital, matemática, dentre diversas outras.
“Defender que bebês e crianças bem pequenas e pequenas terão seu processo educativo garantido se permanecerem em casa é grave, pois todas as pesquisas científicas apontam para a necessidade desse ambiente coletivo, e a pandemia mostrou-nos claramente isso. Ou seja, a proposta de educação domiciliar na etapa da educação infantil contraria o que está posto nas diretrizes que, ressalta-se, expressam o que há de mais atual em termos de pesquisa científica sobre a Educação Infantil, inspirado na experiência educativa de países que revelam grande sucesso nessa etapa”, argumenta a professora da Unidade Ipê Amarelo.
A quem interessa o ensino domiciliar?
No dia 24 de maio, o Sinasefe Nacional promoveu uma live para discutir as intencionalidades que se escondem por detrás do projeto de educação domiciliar – a que interesses e grupos sociais atende, por exemplo, e quais os principais desdobramentos de sua possível aprovação no Congresso? Publicamos, aqui em nosso site, uma matéria sobre o debate virtual.
Mas alguns dos motivos apontados pelos debatedores para explicarem o porquê de um setor da sociedade defender o ensino domiciliar foram o seu caráter privatista e conservador, ambos interesses da ala que apoia mais ferrenhamente o presidente Jair Bolsonaro. Para essas pessoas, enfraquecer as escolas e as universidades – especialmente as públicas – é uma tarefa que abre caminho tanto para a instituição do homeschooling, quanto para a descredibilização dos serviços públicos e, assim, a transferência dos anseios da população para o setor privado.
Na contramão disso, Juliana defende que a escola é o espaço coletivo responsável por contribuir decisivamente para o pleno desenvolvimento físico, psicológico, intelectual, social e cultural de bebês e crianças.
“[…] onde elas têm a oportunidade de conhecerem a si, ao outro e ao mundo, um espaço de socialização, de um brincar coletivo, um ambiente social do exercício da cidadania, vivências essas que são planejadas, acompanhadas e qualificadas por professores com formação específica nessa fase tão singular do desenvolvimento e da aprendizagem humana. Tirando-a da escola para educá-la em casa, a criança perderá o acesso a esse ambiente provedor de um conjunto de aprendizagens essenciais em seu processo de desenvolvimento”, reflete a professora, acrescentando que na escola as crianças têm acesso aos direitos de aprendizagem elencados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): conhecer-se, expressar, conviver, brincar, participar e explorar.
Portanto, não há dúvidas de que a escola se constitui como parte essencial da experiência social da criança, e todas as crianças têm direito a ela. Onde a criança terá garantido esses direitos de aprendizagem, se não na escola?”
questiona Juliana Goelzer
Um ataque, também, aos educadores e educadoras
No caso de o Senado aprovar o projeto, o ambiente escolar poderá ser enfraquecido e, em seu lugar, acredita Juliana, serão multiplicados os espaços educativos informais, sediados em infraestruturas precárias e sem profissionais qualificados. Tal situação fere uma conquista história e importantíssima da sociedade brasileira: o direito das crianças à educação, e a própria concepção de criança como sujeito de direitos.
Cabe destacar, conforme lembra a professora da Ipê Amarelo, que, para além de todo o papel educativo, a escola também cumpre a função de detectar casos de violência, abuso sexual, negligência ou trabalho infantil.
“[…] outro ônus importantíssimo com a aprovação desse projeto é que a proteção das nossas crianças estaria menos garantida, pois esses casos deixariam de ser detectados e encaminhados ao órgão competente, tal como acontece hoje nas escolas. Ou seja, um retrocesso sem precedentes. Em suma, tal proposta infelizmente representa uma grave ameaça aos direitos das crianças de 0 a 5 anos e 11 meses, dentre eles o direito ao seu desenvolvimento pleno”, preocupa-se.
Para finalizar, ela cita dados contidos em nota divulgada pelo Núcleo Ciência pela Infância, segundo os quais as crianças educadas em domicílio ou fora da escola têm menos acesso ao ensino superior, níveis mais baixos de bem-estar e autoconfiança e pior evolução da força e resistência muscular.
Texto: Bruna Homrich
Imagem destacada: página do mandato da Deputada Federal Fernanda Melchiona (PSol/RS)