Profissão professor(a): doação, luta e, sobretudo, esperança
Se a tarefa de entrar em uma sala de aula e lecionar para um grupo de crianças, jovens ou adultos já era, por si só, desafiadora, com turmas cada vez maiores, concursos cada vez mais escassos e inseguranças ainda provenientes dos quase dois anos de trabalho remoto, os desafios se agigantam.
Se há alguns anos, nas universidades e institutos públicos, fazer pesquisa era algo não só encantador mas acessível a milhares de estudantes, que recebiam incentivos para elaborar projetos, investigar inquietudes científicas e propor caminhos para problemas enfrentados por amplos segmentos da população, hoje, frente a cortes orçamentários cada vez mais duros e que colocam em risco o próprio funcionamento cotidiano das instituições, a tarefa de fazer pesquisa e de instigar nas e nos estudantes o encantamento pela vida acadêmica se assemelha a segurar a viga de uma ponte que algo ou alguém quer incessantemente derrubar.
Enquanto há alguns anos as universidades e institutos federais eram reconhecidos como lugares legítimos de construção do saber, hoje, nos discursos do governo federal e de seus apoiadores, são ridicularizados e alvos de diversas críticas e notícias falsas. O respeito à e ao professor deu lugar a um clima persecutório dentro e fora das salas de aula. De referência a doutrinador. Tal é o arco proposto pelos nossos tempos.
Contudo, mesmo diante de uma realidade tão hostil à categoria docente, e talvez justamente por conta dessa realidade, faz-se, mais que nunca, necessário reafirmar a importância do 15 de outubro, Dia do Professor e da Professora. É o que comentam nossos entrevistados, que, sem abandonar a criticidade e a preocupação com o desmonte orquestrado contra as universidades e institutos, ainda entendem a profissão de professor e de professora como de absoluta centralidade para a sociedade e sentem-se agraciados por integrarem uma categoria de tamanha relevância.
Primordialmente, lecionar é ‘’um desafio de preparar gerações para a vida toda’’, segundo o professor de Direito do Trabalho do Colégio Politécnico, Moacir Bolzan. E, nesse desafio, é necessário conhecer os alunos e suas distintas realidades e necessidades, ensinar sobre os problemas sociais da comunidade em que estão inseridos e prepará-los para tentar solucionar esses obstáculos. Para Bolzan, ainda há outro desafio aos professores: explicar para a sociedade o papel da escola e da educação na vida das pessoas, uma vez que o Estado tem se omitido de esclarecer tais questões.
Com o mesmo pensamento, a professora de matemática do Colégio Técnico Industrial de Santa Maria (CTISM), Suziane Bopp, conta que ser professora é ir para a escola torcendo para que os alunos acolham e compreendam os ensinamentos proferidos pelo(a) docente em sala de aula.
‘’Ser professor é ter o grande objetivo de fazer com que o aluno aprenda, caso contrário, não há razão de ser. Ser professor é planejar e despertar a criticidade com a maior impessoalidade possível. Ser professor é improvisar, cativar a atenção com o menor autoritarismo. Ser professor é educar com respeito, com verdade, com limite, mas sobretudo com o exemplo’’, declara Suziane.
O cuidado e o respeito com as realidades de cada estudante são destacadas também por Rosane da Rosa, professora aposentada de Biologia e Ciências da Natureza no CMSM. Para ela, ser docente hoje demanda, também, o desenvolvimento de outras competências, não exigidas até alguns anos atrás.
“Hoje é considerar as características da nova geração que são: independência e espontaneidade, capacidade acelerada de adaptação e interação com novas tecnologias digitais, pois são nativos digitais. Conhecer os alunos, entender suas necessidades, adaptar as aulas, trabalhar com projetos que visem à solução de problemas para que todos possam aprender, enfim promovendo uma aprendizagem significativa”, destaca a docente.
Ainda que o processo de ensino e aprendizagem esteja, hoje, bastante centrado nas novas tecnologias de comunicação e informação, que apresentam novas demandas às e aos professores, o papel do educador segue fundamental para que as e os educandos construam seu conhecimento sob bases sólidas.
“Mesmo com a sua imagem social abalada, o professor deve continuar enfrentando os desafios da profissão com a perspectiva de que o estudante cada vez mais precisa de práticas pedagógicas que o veem como um ser pensante, capaz de fazer opções a partir de uma leitura crítica do mundo. Neste ponto o profissional da educação é exclusivo e o fazer pedagógico é a sua expertise”, complementa Bolzan.
Desafios da pandemia
Em meio a um contexto já marcado por muitos desafios, a pandemia trouxe ainda mais adversidades aos profissionais da educação. Durante 2020 e 2021, professores tiveram que modificar suas metodologias de ensino, a fim de atender às demandas da conexão à distância e à impossibilidade de interagir da mesma forma que antes. Somado a isso, existiam também as aflições causadas pela imprevisibilidade acerca da disseminação do coronavírus, que amedrontou toda a comunidade acadêmica. Esse medo, natural do momento pelo qual passamos, levou muitos docentes a desenvolverem transtornos mentais, a exemplo de ansiedade e depressão, durante e após à pandemia, como revela pesquisa de março de 2022, da FlamingoEDU: 54% dos professores de educação superior gaúcha sofreram uma piora em suas condições físicas e mentais, em comparação a 2021.
A partir dessa conjuntura, retomar ao ensino presencial foi muito mais complexo do que o esperado, como conta Bolzan: ‘’Gerou-se um conjunto de dificuldades ainda não totalmente percebidas e que estamos administrando. Manifestaram-se situações emocionais decorrentes das perdas humanas e familiares, prejuízos e alterações no ritmo e no processo de aprendizagem e dificuldades econômicas e financeiras‘’. Outro obstáculo atual destacado pelo professor é saber qual o limite de incorporação de novas tecnologias ao trabalho em sala de aula, uma vez que as adaptações digitais feitas para o período de isolamento não necessariamente são essenciais para uma boa aprendizagem.
”Estamos buscando o equilíbrio na capacidade de inovar, mas isso exige do professor um amplo conhecimento, não só do que está disponível e lhe é acessível, mas também, como estas ferramentas podem estar alinhadas com a metodologia adotada pela escola e pelo professor e também na capacidade de acompanhar de parte dos estudantes’’, explica o docente.
Tudo que se pretenda “normal”, após 2020, está difícil de se concretizar. A avaliação é de Rosane da Rosa, para quem a pandemia e o ensino remoto desnudou ainda mais as desigualdades sociais que perpassam o Brasil, trazendo questões urgentes a serem elaboradas por quem se dedica à educação.
“O normal, hoje, inclui inúmeros desafios, pois escancarou a desigualdade social nesse país. A grande maioria dos alunos da escola pública teve problemas de acesso às aulas online, além de implicações emocionais. Tivemos comprometimento sérios na aprendizagem e uma defasagem que sentiremos com certeza na próxima década”, problematiza a professora.
Os impactos dos cortes orçamentários
Falar de atividade docente tem sido, também, falar do contexto enfrentado pelas universidades e institutos federais, que vêm sofrendo, especialmente no último período, com duros cortes orçamentários, responsáveis por colocar essas instituições em um cenário de incertezas, aperto de cintos e inclusive possibilidade de encerramento de cursos e atividades.
Somado a esse cenário, salários defasados e constantes negativas do governo em negociar índices de reajuste, carreira com distorções, escassez de concursos públicos e sobrecarga de trabalho podem sugerir, aos jovens do país, que a docência como profissão já não seja um caminho a ser seguido.
Bolzan acredita que, embora o momento seja de dificuldades, a categoria e todo o conjunto das comunidades acadêmicas irá superá-lo:
“Sem dúvida que os cortes do governo afetam a psique dos docentes e impõem dificuldades às futuras e novas escolhas pela profissão. No entanto, acreditamos que o esse momento de intensas dificuldades e desvalorização será superado e os que permanecerem terão sempre motivos efetivos para se fortalecerem no cotidiano da profissão […] tenho enorme confiança e esperança em quem escolhe a docência e permanece nela. Para os que permanecem, a sala de aula é o local que oferece as verdadeiras condições de renovação, atualização e atendimento de demandas e crenças inerentes a sua performance pessoal”, pondera o professor do Colégio Politécnico da UFSM.
Já Suziane vai um pouco mais além: embora alguns governos tenham investido mais em educação que outros, ela nunca viu, em seus quase trinta anos de docência, as escolas e universidades, bem como a profissão de professor, ser efetivamente valorizada.
“Como exemplo, posso citar o Instituto Olavo Bilac, uma instituição estadual centenária e que o prédio foi tombado como Patrimônio Histórico e Artístico pelo Estado desde 2013. Desde que eu “me conheço por gente” o Bilac é do jeito que é, sem investimento algum na escola que há anos necessita de uma boa restauração […] eu acredito que, em nível pessoal, cada um precisa encontrar uma motivação intrínseca para realizar da melhor forma o trabalho a que se destina fazer, independente de qualquer fator. Todas as profissões possuem bônus e ônus. A nossa carrega um fardo maior, pela desvalorização. Em nível coletivo, acredito que a classe deve continuar lutando, tentando se manter unida, apesar de todas as polarizações políticas, para que assegure firmemente os seus direitos e conquistas e que possa vir a adquirir muitas outras mais”, partilha a educadora.
Ser professor e professora é, acima de tudo, assumir um compromisso coletivo. É o que destaca Rosane da Rosa ao mencionar que, num contexto político como o atualmente vivenciado:
“lutar pela profissão é um ato político e de resistência para a sobrevivência da categoria e da Educação no Brasil. Na minha opinião, a presença de sindicatos e organizações que congreguem os docentes são a via para a valorização dos profissionais. Saliento que temos que ter uma ótima formação nas licenciaturas, alicerçada no domínio dos conhecimentos específicos da área em que vão atuar aliados a amplos conhecimentos do fazer pedagógico”.
E é nessa luta coletiva, tanto pelos direitos das e dos professores da Rede Federal de Educação, quanto pela continuidade e fortalecimento da educação pública, gratuita, de qualidade, laica e socialmente referenciada, que o Sinasefe Santa Maria se insere.
Recentemente, nossa assessoria de imprensa lançou o documentário “Sinasefe Santa Maria: uma trajetória de luta em defesa da educação e dos direitos da categoria”, no qual dirigentes contam um pouco sobre a fundação da entidade – na esteira das mobilizações pela abertura democrática, no final da década de 1980, as principais bandeiras de luta e a importância da sindicalização. Assista abaixo:
Texto: Bruna Homrich e Laurent Keller
Arte: Xainã Pitaguary